Inventário foi uma coluna mensal do Itaú Cultural na qual dois fotógrafos recebiam uma palavra e foram convidados a transformá-la em imagem e texto durante quatro meses. Participei da coluna de agosto até novembro de 2022 ao lado de Marina Nacamuli. Durante esse período trabalhamos com as palavras Margem, Origem, Resistência e Transformação.

Inventory was a monthly column of Itaú Cultural in which two photographers received a word and were invited to transform it into image and text for four months. I participated in the column from August until November 2022 along with Marina Nacamuli. During this period we worked with the words Margin, Origin, Resistance and Transformation.


                                         Margem
Acho o funcionamento da memória algo tão fascinante que, para mim, as imagens de um acontecimento passado surgem pouco a pouco pelas beiradas da lembrança. A narrativa que se constrói em minha cabeça sobre uma trilha que percorri 15 anos atrás me relembra o começo de uma relação importante com fungos e cogumelos, que só agora vejo como essencial.
Acompanhado de três amigos, lembro de saltarmos de carona numa praia do litoral catarinense na cidade de Penha e descermos a estrada de terra rumo a uma área cercada que dava próximo à praia. Ao pular o limite da cerca de arame farpado, estávamos afirmando uma posição e dispostos a lidar com o inesperado. Cruzamos com alguns pescadores, que não impediram a gente de continuar, mas foram pontuais em dizer que estávamos por nossa conta. Assentimos com a cabeça ao aviso.
Deslumbrados com a sensação de pular algumas cercas, lidar com sinais de tensões e fazer uma trilha não oficial pela beira do mar, sentimos a adrenalina baixando e dando espaço para que a endorfina e a serotonina nos acompanhassem. Depois de uma euforia, cruzamos a restinga da praia em silêncio e avistamos alguns bois que ficavam vagando na beira da grama próximo a uma praia.
Ali lembro do primeiro contato com um cogumelo mágico; eram alguns Psilocybe cubensis crescendo livres nas bordas da praia. Cogumelos com princípios psicoativos que cresciam em conjunto, porém em grupos espalhados. Lembro que ficamos curiosos, mas não muito mais que isso, e seguimos a caminhada seduzidos pela ideia de ver a paisagem inóspita e rochosa, com precipícios e o mar arrebentando a sua beirada.
Eu não fazia ideia da importância daqueles pequenos seres silenciosos àquela época. Também não me dava conta de que caminhar e encontrar cogumelos são atividades que se retroalimentam, o corpo entra em um estado de contemplação e prazer, os sentidos ficam mais aguçados e a sensibilidade aflora. O tempo é outro no encontro com os cogumelos; é necessário ter paciência, e não pressa, para sentir um dos mais belos espantos que existe.
Há uma diversidade enorme de cogumelos onde quer que haja vida. Esses seres silenciosos são espécies companheiras de outros seres não humanos e, através de relações intraespecíficas, conversam entre si usando impulsos elétricos e servem de canal de comunicação entre raízes de árvores e plantas, sempre buscando ajudar na troca de minerais.
A superioridade humana nos cega, subestimamos a natureza – e ainda mais se ela for pequena como essa que cresce às margens de estradas, no canto de árvores e nos quintais. Sem fungos é impossível que exista uma paisagem multiespécies que pulsa vida, e através dessa vida existe muita sabedoria.
O urupê, ou Pycnoporus sanguineus, um fungo laranja que pode ser avistado de longe, é encontrado sobre troncos caídos na mata ou na floresta. Além de ser responsável pela decomposição daquele tronco, ajudando na regeneração florestal, pode ser utilizado para tratar cicatrizes humanas, como afirmam os saberes populares e campesinos que resistem na força da oralidade.
Penso que as imagens para construir um futuro possível em que coexistamos com inteligências não humanas estão muito mais próximas do pé de guasca que se apoia nas costas do Seu Olivares no fim do dia ou do urupê coletado para estudo, que traduz a ideia de companheirismo interespecífico com duas folhas que o atravessam. 
A sabedoria e a noção de companheirismo que os cogumelos e fungos carregam estão com eles nessas margens indomáveis, como bem disse Anna Tsing, e basta somente a nós escolher olhar para as beiradas e aprender com eles para seguirmos em frente.
                                          Origem
Ontem, perguntaram-me se eu já tinha escrito um texto novo. Disse que não, pois o tempo dedicado à escrita estava se diluindo entre o peso das preocupações, as contas a pagar e algumas noites maldormidas. Escrever, para mim, é algo muito precioso e consiste em um estado quase meditativo de estar presente na construção da narrativa. Para mim, tem a ver com traduzir em palavras o silêncio das imagens do cotidiano. No entanto, quando esse silêncio não existe, minha atenção é facilmente desviada pela urgência em querer resolver as equações das dúvidas e dos problemas que pipocam na minha cabeça. Quando paro para pensar na origem do que me impede de escrever, penso em uma questão: como meu avô lidava com sua mente atribulada?
E, ao pensar nele, a narrativa se constrói.
Carrego comigo o mesmo nome que meu pai, meu avô e meu bisavô. Na minha carteira, próximo à identidade, carregava esta foto 3x4 do meu avô. Um retrato desses feitos em cabines de foto para documento, em algum ano em que ainda existiam essas cabines nas praças do Centro de Curitiba. Em certo momento, o tempo veio de encontro ao seu retrato e alterou sua imagem.
Provavelmente, ele comprou várias cópias, e uma delas veio parar na minha carteira anos após o último brilho do seu olhar. Nesta imagem, vejo que seus olhos são enfatizados pela mistura do seu rosto com bolor e sinto como se sua imagem estivesse desaparecendo aos poucos e eu pudesse esquecer completamente vários momentos da sua existência.
Mas, na contramão do apagamento da memória, ficam marcadas essas texturas que me fazem lembrar das camadas que constituem as nossas vidas. Muitas palavras que foram ditas anos atrás pelo Walter sem barba, com olhos azul-claros e cabelo grisalho até hoje ressoam no Walter de olhos castanhos que escreve este texto enquanto reconhece os pelos brancos que se espalham pela barba e pelos cabelos.
As ondulações do tempo me trazem até aqui para pensar sobre imagem, origem, família e memória. Por breves momentos, esqueço o que me impedia de escrever. Ao topar dançar com as palavras em torno do que me afligia, entendo que nem sempre é preciso uma resposta concreta às dúvidas que guiam os dias.
                                Resistência
Caminho pela cidade pensando na precarização da vida.
Ao caminhar, é possível sentir as ruas saturadas dos traumas sociais dos últimos anos.
Apresso meus passos e não consigo deixar de pensar na destruição sistemática de diversos ecossistemas por parte do atual Governo Federal.
Enquanto cruzo o tráfego, eu me permito sonhar acordado em meio a um mundo que se despedaça. Sou presenteado com imagens de resistência:
- Uma grade de ferro quilométrica pintada de verde se estende por diversas quadras. Sua função é impedir as pessoas de cruzar a canaleta do ônibus. Em um pequeno pedaço de terra de 20 cm x 20 cm, um abacateiro insiste em crescer entre a grade, sua ascensão não abala a estrutura de ferro, tampouco incomoda a visibilidade de pedestres ou motoristas; porém num ato de controle alguém da rua poda os galhos sem autorização. Não satisfeito, o abacateiro busca se expandir novamente entre o concreto e a grade de ferro.
- Um guapuruvu forte e esbelto pulsa vitalidade no centro da cidade. Quando o sol incide sobre sua copa, ele gentilmente projeta uma sombra que acolhe alguns trabalhadores no intervalo do almoço. Um deles tira um tempo para fumar e ao finalizar seu cigarro escolhe tirar um cochilo encostado no tronco da árvore. Com suas raízes brilhantes, o guapuruvu embala o sono do trabalhador, mas por baixo da terra deforma a calçada de paver com várias ondulações como se ali tivesse passado um sutil terremoto.
- 300 anos é a idade aproximada de uma senhora paineira; com seus 35 metros de altura, ela é vista por todos na região em que habita. Ao longo das décadas, muitas foram as alterações geográficas no seu entorno; ela carrega consigo toda a memória de um bairro. Sua copa, repleta de flores rosa, é vista de longe na paisagem. É possível vislumbrar a interação de dezenas de maritacas que pela manhã entoam um canto uníssono enquanto visitam a árvore. No fim da tarde, outras visitantes também aparecem em dezenas, são borboletas-maracujá-silvestres que em um ritual coletivo dançam com o vento entre as folhas, uma verdadeira sinfonia de cores e sons.
- Vários coqueiros jerivá enfeitam a entrada de um prédio desses de caráter estéril decorado com pastilhas nas cores cinza e creme. Em uma terça-feira às 15 horas, três tucanos de bico verde buscam alimento e fazem dos coqueiros seu banquete. Noutro dia, em frente ao prédio, um carcará adulto caminha às 7 horas da manhã de um sábado e não se intimida com a presença de pessoas que o admiram numa distância de 3 metros. Como quem se despede de um amigo, rapidamente alça voo até o maior coqueiro para entoar seu canto e hipnotiza todos que estão com os ouvidos atentos.
- Nos arredores de um parque urbano, um grupo de seres cresce silenciosamente longe do interesse das pessoas. Agrupados no chão, próximos das raízes de árvores ou crescendo em troncos já caídos, criam cidades inteiras. É possível se maravilhar com uma família de Auricularia polytricha, cogumelos comestíveis agrupados em uma árvore, e logo ao lado com um grupo de Pycnoporus sanguineus, que auxilia a decomposição de outra árvore. Mais escondido no meio do parque, com um ar de mistério e maravilha, um mixomiceto amarelo se alimenta com inteligência de outros fungos em um tronco robusto. Ali nesse pedaço de natureza, todo um microcosmo fortalece um ciclo essencial para o bem comum.
                              Transformação
Hoje acordei interessado pela cor azul-petróleo.
Em vez de tomar meu café da manhã, mergulho em um tinteiro antigo que cabe na palma da minha mão a fim de ver o imenso oceano que existe ali dentro daquele pequeno objeto. Nunca havia nadado em mar revolto; mesmo sabendo do risco de me engastar em tinta densa e sofrer uma intoxicação, eu insisti nas braçadas de nado crawl pelo espaço infinito do tinteiro.
O sentimento de adentrar no vazio é um caminho sem volta, um misto de apreensão e serenidade. Flutuando na escuridão, senti uma música embalar meu corpo junto da maré. Enquanto olho para as nuvens imensas que se formam sobre mim, adormeço por um tempo indeterminado.
Sou acordado pelo choque contra um pequeno barco de madeira. Em cima dele se encontrava uma senhora não muito alta, nem muito baixa, cega, com cabelos grisalhos e compridos. Vestia um manto de algodão na cor roxa, tinha apetrechos nas mãos, nos braços e nos dedos. Seus colares chamavam atenção, sementes coloridas, ossos, galhos, dentes, penas e um deles tinha um frasco de vidro pendurado. Dentro do frasco, uma pequena pena azul.
Com sua sanfona, tocava a música que eu tinha escutado anteriormente e sem que eu lhe perguntasse ela me disse que era a tradução do lamento de um tordo que vivia no alto de uma montanha rochosa e sua única companhia eram as pedras, o vento e a própria montanha.
O pássaro lamentava a inexistência de outras aves enquanto os outros seres tentavam oferecer conforto a ele, falando que a aptidão de ter asas para poder migrar de um lugar a outro era um presente.
Sentado dentro do barco todo arrepiado e admirado por ouvir aquela senhora falar, eu estava repleto de perguntas. Fazia horas, talvez até dias que eu estava nadando junto da solidão. Manifestei através do meu corpo certa inquietude e antes mesmo que eu soltasse alguma palavra ela interrompeu a música e me perguntou se eu estava contente com essa minha nova forma.
Dezenas de azulinos-da-montanhas apareceram, voando em círculos ao nosso redor. De alguma maneira era possível ouvir a conversa desse pequeno tufão de tordos e a sanfona daquela figura onírica. Lembro que a única mensagem que tirei desse último momento era que o futuro pode ser muito mais do que viver assombrado por mágoas e frustrações do passado.